quinta-feira, abril 03, 2008

Literacia da Informação : Um Desafio para as Bibliotecas - José António Calixto

Literacia da Informação : Um Desafio para as Bibliotecas
José António Calixto

Resumo:
A presente comunicação resulta em parte de uma investigação sobre os papéis educacionais das bibliotecas públicas em Portugal, concluída em 2001. Com base numa extensa revisão da literatura, ela começa por discutir os conceitos de literacia e literacia da informação. São em seguida apresentados e discutidos alguns modelos de literacia da informação, bem como organizações e projectos a ela associados. O papel das bibliotecas no desenvolvimento da literacia da informação é analisado, concluindo-se que elas são intervenientes decisivos neste processo devido ao facto de possuírem recursos de informação variados e em quantidade, sistemas de gestão de informação e pessoal especializado.
São também identificadas algumas barreiras ao cabal desempenho dos papéis das bibliotecas neste campo, nomeadamente a limitação de recursos, falta de tradição e de teoria, e ainda concepções limitadas sobre os papéis das bibliotecas tanto entre os profissionais como em termos sociais.

O apoio aos utilizadores das bibliotecas para desenvolvimento de competências no sentido de melhor explorarem os recursos nelas disponíveis é preocupação e tarefa já antiga das bibliotecas e dos bibliotecários de muitas partes do mundo. Contudo, as transformações sociais e tecnológicas ocorridas nas últimas décadas (que costumamos caracterizar como a sociedade da informação), e novas teorias educacionais, incluindo a generalização da ideia da aprendizagem ao longo da vida, vieram dar uma nova dimensão a estas funções tradicionais das bibliotecas.

O aumento exponencial da informação disponível e das potencialidades dos mecanismos para o seu armazenamento e recuperação tornou clara a necessidade de alargar o conceito tradicional de formação de utilizadores, incluindo agora outras competências. Este alargamento origina por sua vez complexidade acrescida do trabalho das bibliotecas e dos seus profissionais, pois a questão da literacia da informação situa-se na intersecção de dois campos profissionais: o educacional e o da
informação. Este texto tem origem numa investigação sobre os papéis educacionais das bibliotecas públicas em Portugal, terminada em 2001. Esse estudo concluiu que estas bibliotecas podem desempenhar papéis de grande relevo tanto no apoio ao desenvolvimento da literacia e da aprendizagem ao longo da vida como no apoio à educação formal e mostrou também como estes papéis têm importantes implicações em termos de inclusão social. O referido estudo fez uma revisão extensiva da literatura disponível sobre o assunto, tanto em português como em inglês, posterior a 1990. O trabalho de campo consistiu num questionário enviado aos bibliotecários responsáveis pelas bibliotecas então abertas no âmbito da Rede Nacional de Bibliotecas Públicas e numa entrevista semi-estruturada a bibliotecários e eleitos locais em 15 municípios seleccionados. Tomando como base as conclusões desse estudo no que diz respeito à literacia da informação, o presente texto sintetiza algumas das ideias ali desenvolvidas, complementando-as com contributos da mais significativa literatura entretanto produzida sobre o tema.

Literacia ou literacias
A literacia tem sido muitas vezes associada às competências de leitura e escrita, mas o âmbito deste conceito tem-se alargado juntamente com o próprio conceito de leitura. Além disto, a emergência e a expansão de outros média nas últimas duas décadas trouxe consigo expressões como literacia do audiovisual e literacia informática, entre outras. Esta é seguramente uma das razões porque cada vez mais autores usam a palavra no plural (Bhola, 1998). Além disto, autores como Scriber e Cole (1981:236) há muito sublinharam a extensão do conhecimento da leitura e da escrita às reais capacidades de utilizar estas competências, ao afirmarem que a “literacia não é simplesmente saber ler e escrever um texto em particular mas aplicar este conhecimento para propósitos específicos em contextos de uso específicos”. Foi este o conceito utilizado pelo Estudo Nacional sobre a Literacia, que a definiu como “as capacidades de processamento da informação escrita na vida quotidiana. Trata-se das capacidades de leitura, escrita e cálculo, com base em diversos materiais escritos (...), de uso corrente na vida quotidiana (social, profissional e pessoal).” (Benavente, 1996 : 4).
A literacia tem profundas implicações individuais e sociais, para além de económicas. Indivíduos anteriormente analfabetos, quando falam da literacia associam-na com o poder, liberdade e luz (Bhola, 1997). Como escreveu Strong (1998: 36) “as pessoas que não sabem ler, muitas vezes sentem-se sós e incapazes de se relacionar”. Níveis de literacia elevados são hoje associados à empregabilidade e à cidadania (OCDE, 2000).

Literacia da informação
Uma revisão da literatura sobre a literacia da informação na Europa (Virkus, 2003) permitiu estabelecer as principais tendências dos conceitos usados e discutidos pelos autores europeus. Além disto, o autor identifica em diversos trabalhos a relação entre a literacia da informação e as bibliotecas, nomeadamente através do desenvolvimento de conceitos precursores como por exemplo o de “formação de utilizadores”, levada a cabo sob diversas formas, já nos anos de 1970 e 1980 em bibliotecas do ensino superior no Reino Unido, Alemanha e países escandinavos. A atenção crescente que a literacia da informação tem tido nos últimos anos pode em parte ser atribuída ao crescimento exponencial da quantidade de informação disponível bem como ao predomínio crescente dos formatos digitais. Outro factor importante é inegavelmente a atenção dada cada vez mais às capacidades de estudo dos alunos e à aprendizagem ao longo da vida, por outras palavras, a valorização daquilo que tem sido frequentemente designado por “aprender a aprender” em detrimento da simples aquisição de conhecimentos. Estes factores estão, segundo
Virkus (2003) na origem da necessidade de uma reconceptualização dos papéis e das responsabilidades dos profissionais das bibliotecas. Diversas organizações e estudiosos têm avançado com definições de literacia da informação. Uma das mais frequentemente citadas é a da American Library Association, que diz que um indivíduo com competências de informação “deve ser capaz de reconhecer quando a informação é necessária, e ter as capacidades para a localizar, avaliar e usar eficazmente.” (ALA, 1989). Muitas outras definições acabam por ser derivações desta, com alguns desenvolvimentos. Uma declaração de princípios da American Library Association (Association of College and Research Libraries, 2000) afirma que um indivíduo com literacia da informação é capaz de:
· Determinar a extensão da informação de que necessita;
· Aceder à informação de que necessita de um modo eficaz e eficiente;
· Avaliar criticamente a informação e as suas fontes;
· Incorporar a informação seleccionada na sua base de conhecimentos
· Usar a informação eficazmente de modo a conseguir um objectivo específico
· Compreender as questões económicas, legais, e sociais que envolvem o uso da
informação, e aceder e utilizar a informação de um modo ético e legal.
A literacia da informação é considerada de extrema importância tanto em termos sociais e económicos como individuais e para a cidadania (ALA, 1989; Correia, 2003). A sua importância crescente é também testemunhada pelo número de entidades e organizações internacionais que dela se ocupam e que têm produzido estudos, relatórios e recomendações. Vários projectos europeus, como o EDUCATE e o DEDICATE, abordaram questões relacionadas com a literacia da informação e diversos países estabeleceram grupos de trabalho e instituições, conferências e sítios na Internet (Webber & Johnston, 2003) com o objectivo de a estudar e promover (Virkus, 2003). Organizações profissionais têm entretanto procurado estabelecer padrões e produziram declarações sobre a literacia da informação. A mais citada é a da American Library Association (Association of College and Research Libraries, 2000), mas também as associações de bibliotecários e de bibliotecários escolares australianos e canadianas produziram as suas declarações (Webber & Johnston, 2003).

Os modelos de literacia de informação
A literatura sugere que o trabalho na área da literacia da informação tem seguido duas vias distintas, com, apesar de tudo, muitos pontos em comum: uma para o ensino não superior e outra para o ensino superior. No primeiro caso, o trabalho pioneiro desenvolvido por Marland (1981) tem sido um ponto de partida para muitos professores, investigadores e bibliotecários interessados no assunto, e é ainda hoje muito citado e considerado actual. Este modelo parte de um conjunto de nove perguntas colocadas pelos alunos ao realizarem trabalho de investigação, às quais são dadas nove respostas em termos das competências ou acções, sendo frequentemente referido como os “nove passos” de Marland.
Perguntas ..............................................................Competências
1. O que é que eu preciso de saber? .....................Formula e analisa as necessidades
2. Onde é que eu posso ir? .....................................Identifica e avalia fontes prováveis
3. Como é que chego até à informação? ................dentifica e localiza recursos específicos
4. Quais os recursos que devo usar?.....................Examina, selecciona e rejeita recursos específicos
5. Como usarei os recursos? ..................................Interroga os recursos
6. De que parte devo fazer registos? ....................Registo e organização da informação
7. Tenho a informação de que necessito?.............Interpretação, análise, síntese, avaliação
8. Como irei apresentá-la?.....................................Apresentação comunicação
9. O que é que eu consegui?................................. Avaliação
Modelo de Marland (1981) da literacia da informação

Um outro modelo, desenvolvido por Herring (1996), propõe o modelo PLUS, a sigla resultante das diferentes etapas propostas: Propósito, Localização, Utilização e Auto-avaliação (self-evaluation em inglês). Este modelo resulta de investigação aplicada feita em várias escolas do Reino Unido. Nos Estados Unidos desenvolveu-se um modelo que tem uma grande aplicação e dinâmica, visíveis através de um grande número de publicações, produtos e acções de formação. Apresenta seis etapas no processo da literacia de informação: definição de tarefas, estratégias de pesquisa de informação, localização e acesso, utilização da informação, síntese e avaliação. É o chamado Big 6, que constitui uma marca comercial (Eisenberg & Berkowitz, 2001).
A dinâmica do que pode ser designado por movimento da literacia da informação é sugerida pelo número crescente de páginas de Internet de bibliotecas académicas de diversas partes do mundo que incluem com grande relevo informações sobre o assunto, textos de apoio e tutoriais, como por exemplo o curso da Biblioteca da Universidade do Novo México (Ortiz, 2004). Outra evidência desta expansão é o surgimento de cursos de mestrado e pós-graduação em literacia da informação, como o que é oferecido pela Charles Stuart University, na Austrália (Centre for Studies in Teacher Librarianship, 2001).
No Reino Unido e na Irlanda uma associação de bibliotecas académicas e nacionais (SCONUL) desenvolveu investigação e estabeleceu padrões para a literacia de informação especialmente destinados ao ensino superior (Bainton, 2001). Este modelo identifica sete competências principais, definidas como as capacidades para reconhecer uma necessidade de informação; distinguir modos em que a “falha” de informação pode ser tratada; construir estratégias para localizar a informação; localizar e aceder à informação; comparar e avaliar informação obtida de diferentes fontes; organizar, aplicar e comunicar informação aos outros de modo adequado às situações; sintetizar e adicionar à informação existente, contribuindo para a criação de novo conhecimento.
Um modelo de literacia da informação muito citado, e que parece ter tido muita influência em diversos países, é o de Christine Bruce, muitas vezes referido como “as sete faces da literacia da informação” (Bruce, 2002). Este modelo resulta de investigação realizada a partir da Austrália e contempla diferentes perspectivas e experiências individuais na procura da informação.
As bibliotecas e a literacia de informação Um trabalho de fundo sobre a situação em Portugal no que diz respeito ao papel desempenhado pelas bibliotecas no desenvolvimento da literacia da informação está ainda por realizar. A escassa literatura disponível sugere a inexistência de programas de desenvolvimento da literacia da informação nas bibliotecas universitárias (Correia, 2003). Contudo, segundo a autora, “a literacia da informação está lentamente a ser incorporada como uma disciplina académica nos curricula”, e “algumas bibliotecas universitárias têm estado a dar formação aos seus utilizadores, especialmente no que diz respeito ao uso de fontes de informação electrónica”. A inclusão de um conjunto de informações, textos e ligações sobre a literacia da informação no sítio da Internet do Gabinete das Bibliotecas Escolares do Ministério da Educação é um indício da consciência crescente sobre esta problemática ao nível das bibliotecas escolares.
Os dados recolhidos pelo trabalho de campo que está na origem deste texto sugerem uma opinião generalizada entre os bibliotecários das bibliotecas públicas em Portugal de que a situação da literacia da informação neste país carece de atenção urgente. Um bibliotecário de um concelho de média dimensão do sul do país afirmou: Estamos bem conscientes de que ninguém é ensinado a fazer pesquisa. As pessoas não são ensinadas na escola a fazer uma pesquisa bibliográfica, não
são ensinadas na biblioteca, não são ensinadas em lado nenhum. (...) Não sabem como consultar uma enciclopédia ou um dicionário, não sabem se está organizado alfabeticamente ou de outra forma qualquer. No que diz respeito a outra informação, como a Internet, também não sabem como pesquisar em bases de dados. Há um grande desconhecimento sobre a importância da
informação e onde é que essa informação pode ser encontrada. Penso que há um grande desconhecimento na sociedade portuguesa. E por vezes aos níveis mais insuspeitos, pessoas a fazerem mestrados ou doutoramentos, professores universitários...
Um outro depoimento de um bibliotecário de um concelho médio da região Centro dá testemunho e exemplifica o trabalho realizado no desenvolvimento das competências de informação: E trabalhamos com eles [as crianças] na pesquisa de informação e na sua recuperação. Eles aprendem como a informação está organizada e que podem usar diferentes suportes (...) Tentamos educá-los para o método no que diz respeito à pesquisa. Tentamos conduzi-los para um pensamento organizado, de forma a eles poderem desenvolver o seu conhecimento e crescer como pessoas. Penso que a biblioteca tem a função de ajudar os utilizadores a criar algum método, ajudá-los a subir alguns degraus na pesquisa de informação,
para terem um método de pesquisa.
A literatura é abundante nas referências às bibliotecas enquanto instituições apropriadas para o desenvolvimento da literacia da informação. No Reino Unido, a relevância do apoio das bibliotecas públicas no apoio às competências de informação foi sublinhada por Lonsdale (2000 : 21), que concluiu que 90% dos bibliotecários que responderam ao seu questionário pensavam que tinham um papel central a desempenhar neste campo. Ecos desta ideia podem ser encontrados no Manifesto da UNESCO para as bibliotecas públicas quando considera que “facilitar o desenvolvimento da capacidade de utilizar a informação e a informática” é uma das
missões essenciais destas bibliotecas. Um influente estudo sobre a relevância das bibliotecas escolares para a educação realizado no Reino Unido sugere que “a biblioteca escolar, particularmente no ensino secundário, é a base natural para o ensino das competências de informação” (Grã Bretanha, Department of National Heritage, 1995 : 53). O significado do apoio
dado aos alunos pelas bibliotecas é também sublinhado pelo mais recente Manifesto da Unesco sobre bibliotecas escolares, ao incluir entre as suas missões essenciais o “apoiar os estudantes na aprendizagem e prática de capacidades de avaliação e utilização da informação, independentemente da natureza, suporte ou meio, usando de sensibilidade relativamente aos modos de comunicação de cada comunidade”. O estatuto e o papel dos bibliotecários escolares tem levantado muita discussão em todo o mundo e particularmente em Portugal, onde o seu estatuto continua por esclarecer e reconhecer. Contudo, a literatura referenciada em outros países, é muito clara no que diz respeito ao seu papel no desenvolvimento da literacia da informação. Por exemplo, Herring (1988) considera que “a actividade principal do bibliotecário escolar é contribuir para o ensino das competências de informação na escola”. As directrizes da IFLA para a formação de bibliotecários escolares sublinha a necessidade de estes desenvolverem um conjunto de competências. Entre estas inclui as seguintes: “A capacidade de apoiar alunos e professores no uso eficaz de vários recursos de informação, tanto os materiais como o equipamento, por exemplo através de formação sistemática em competências de informação.
“A capacidade de planear e desenhar em cooperação com professores e estudantes, actividades e trabalhos baseados na informação que apoiem o projecto educativo da escola, incluindo as tecnologias de informação e as fontes disponíveis através de canais electrónicos” (Hannesdóttir, 1995).

Conclusões
Tanto a literatura como os dados obtidos no trabalho de campo sugerem que a literacia em termos gerais e a literacia de informação em particular são essenciais para os indivíduos, para a economia e para as sociedades, ainda mais no contexto da sociedade da informação. Há também indícios seguros de que as bibliotecas são instituições particularmente apropriadas para apoiar e promover acções de apoio ao desenvolvimento da literacia da informação, e de que, de forma seguramente desigual, este papel tem sido abraçado por profissionais em diversos pontos do mundo. A existência nas bibliotecas de recursos de informação diversificados e em quantidade, de sistemas de gestão de informação cada vez mais potentes, de pessoal especializado e de uma tradição de décadas no apoio aos utilizadores, torna-as particularmente capazes de desempenhar estes papéis. Contudo, algumas forças parecem dificultar a cabal realização deste potencial em bibliotecas de diversos países, entre os quais Portugal. Uma investigadora (Van Fleet, 1990) identificou um conjunto de obstáculos que podem impedir as bibliotecas públicas de desempenhar cabalmente o seu papel no apoio à aprendizagem ao longo da vida. Esses obstáculos são: a relutância dos bibliotecários em desempenhar um papel não tradicional, uma percepção pública errada dos papéis das bibliotecas, a falta de recursos e a ausência de uma filosofia de suporte. Com as devidas adaptações, este quadro poderia ser utilizado para analisar as debilidades das bibliotecas portuguesas no que diz respeito ao cumprimento dos seus papéis no apoio ao desenvolvimento da literacia da informação. Em relação à realidade portuguesa, só uma investigação mais aprofundada permitirá no futuro esclarecer os conceitos de literacia da informação na(s) comunidade(s) escolar(es), bem como a forma como as diferentes bibliotecas estão na realidade a desempenhar as suas funções neste campo. José António Calixto

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